AMOR PARA A PSICANÁLISE
Psychologies Magazine
em outubro 2008. A entrevistadora é Hanna Waar.
Psychologies: A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?
Jacques-Alain Miller:
Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor
automático, e freqüentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista
e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do mesmo estofo que o
amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige àquele que a
senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor permite
imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de fato,
difícil de suportar.
P.: Então, o que é amar verdadeiramente?
J-A Miller: Amar
verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a uma verdade
sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à
nossa questão “Quem sou eu?”.
P.: Por que alguns sabem amar e outros não?
J-A Miller: Alguns
sabem provocar o amor no outro, os serial lovers – se posso dizer – homens e
mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não
necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é
necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro,
que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem ser, não
sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os
pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias.
P.: “Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso…
J-A Miller: Acertou!
“Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem”. O que quer dizer: amar é
reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se
possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si
mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua “castração”, como
dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só se ama verdadeiramente a partir
de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco
cômico em um homem. Porém, se ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na
realidade, não está seguro de sua virilidade.
P.: Amar seria mais difícil para os homens?
J-A Miller: Ah, sim!
Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade
contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de
incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não
ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama.
Esse princípio Freud denominou a “degradação da vida amorosa” no homem: a cisão
do amor e do desejo sexual.
P.: E nas mulheres?
J-A Miller: É menos
habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro masculino. De um
lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o
homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a
anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada
vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados na
Internet, na rua, no trem…
P.: Por que “cada vez mais”?
J-A Miller: Os
estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena
mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se
feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”:
em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo
tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como
casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez
generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O
amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman (1). Cada um é levado
a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu modo de gozar e de
amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para
neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.
P.: “O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade
no contexto atual? O que significa?
J-A Miller: Repete-se
esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer que é
suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo. Quer dizer:
“Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás
envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco porque
existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno da causa do
amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa. Meu amor por ti não é
só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa de ti que talvez tu
mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma, que ao amor de um
responderá o amor do outro: isso, quando isso se produz, é sempre da ordem do
milagre, não é calculável por antecipação.
P.: Não se encontra seu
‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?
J-A Miller: Existe o
que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor, a causa do desejo. É
um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para cada um função
determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às neurociências,
porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular e íntima.
Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo, assinalou como causa
do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!
P.: É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem
valor, nessas baboseiras!
J-A Miller: A realidade
do inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem idéia de tudo o que está
fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em bagatelas, em cabeças de
alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que, sobretudo no macho, se
encontram tais causas do desejo, que são como fetiches cuja presença é
indispensável para desencadear o processo amoroso. As particularidades miúdas,
que relembram o pai, a mãe, o irmão, a irmã, tal personagem da infância, também
têm seu papel na escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor
é, de preferência, mais erotômana que fetichista : elas querem ser amadas, e o
interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no outro, é
sempre uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou, pelo menos, seu
consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.
P.: O senhor atribui algum papel às fantasias?
J-A Miller: Nas
mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais determinantes para
a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o inverso para os homens.
Por exemplo, acontece de uma mulher só conseguir obter o gozo – o orgasmo,
digamos – com a condição de se imaginar, durante o próprio ato, sendo batida,
violada, ou de ser uma outra mulher, ou ainda de estar ausente, em outro lugar.
P.: E a fantasia masculina?
J-A Miller: Está bem
evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico, comentado por Lacan, é,
no romance de Goethe (2), a súbita paixão do jovem Werther por Charlotte, no
momento em que a vê pela primeira vez, alimentando ao numeroso grupo de
crianças que a rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da mulher que desencadeia
o amor. Outro exemplo, retirado de minha prática, é este: um patrão
qüinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma jovem mulher de
20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo. Pergunta-se o que o
tomou, entra em análise. Lá, descobre o desencadeante: ele havia nela
reencontrado os traços que evocavam o que ele próprio era quando tinha 20 anos,
quando se apresentou ao seu primeiro emprego. Ele estava, de alguma forma,
caído de amores por ele mesmo. Reencontra-se nesses dois exemplos, as duas
vertentes distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que protege, aqui a mãe,
ou a uma imagem narcísica de si mesmo.
P.: Tem-se a impressão de que somos marionetes!
J-A Miller: Não, entre
tal homem e tal mulher, nada está escrito por antecipação, não há bússola, nem
proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é programado como o do
espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes. Os homens e as
mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é determinante. As
modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura ambiente. Cada civilização se
distingue pela maneira como estrutura a relação entre os sexos. Ora, acontece
que no Ocidente, em nossas sociedades ao mesmo tempo liberais, mercadológicas e
jurídicas, o “múltiplo” está passando a destronar o “um”. O modelo ideal do
“grande amor de toda a vida” cede, pouco a pouco, terreno para o speed dating,
o speed loving e toda floração de cenários amorosos alternativos, sucessivos,
inclusive simultâneos.
P.: E o amor no tempo, em sua duração? Na eternidade?
J-A Miller: Dizia
Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é repugnante” (3). Entretanto,
pode o laço se manter por toda a vida no registro da paixão? Quanto mais um
homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende a ter para ele uma
significação maternal: quanto mais sublime e intocada, mais amada. São os
homossexuais casados que melhor desenvolvem esse culto à mulher: Aragão canta
seu amor por Elsa; assim que ela morre, bom dia rapazes! E quando uma mulher se
agarra a um só homem, ela o castra. Portanto, o caminho é estreito. O melhor
caminho do amor conjugal é a amizade, dizia, de fato, Aristóteles.
P.: O problema é que os homens dizem não compreender o que querem
as mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas…
J-A Miller: Sim. O que
faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de um sexo ao outro é
impossível, suspirava Lacan. Os amantes estão, de fato, condenados a aprender
indefinidamente a língua do outro, tateando, buscando as chaves, sempre
revogáveis. O amor é um labirinto de mal entendidos onde a saída não existe.
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(1) Zygmunt Bauman,
L’amour liquide, de la fragilité des liens entre les hommes (Hachette
Littératures, « Pluriel », 2008)
(2) Les souffrances du
jeune Werther de Goethe (LGF, « le livre de poche », 2008).
(3) Honoré de Balzac in
La comédie humaine, vol. VI, « Études de mœurs : scènes de la vie parisienne »
(Gallimard, 1978).
Tradução de Maria do
Carmo Dias Batista.